RESENHA - A Jangada de Pedra
- Juliana
- 19 de abr. de 2017
- 4 min de leitura
A Jangada de Pedra é um livro que estava na minha estante desde que eu cursei uma cadeira eletiva só sobre estudos de José Saramago (isso faz uns oito anos). Este livro estava entre as indicações de leitura, e eu acabei comprando esta edição antiga de capa dura em um sebo. Chegou o fim do semestre, do ano, a vida foi passando, e só neste ano de 2017 eu me animei a ler este livro.

Para começarmos a falar sobre A Jangada de Pedra, precisamos considerar o ano de lançamento da primeira edição: 1986, ano em que Portugal ingressou na Comunidade Econômica Europeia.
Saramago problematiza essa adesão de Portugal à União Europeia por meio de uma história, com muitos elementos fantásticos, que narra o estranhíssimo desligamento da península Ibérica, que rompe os monte Pirineus na fronteira da Espanha com a França, e sai em uma viagem inusitada pelo oceano Atlântico. Ao contrário do que se decidia politicamente, na história de Saramago, Portugal dá as costas ao velho continente e ruma a um lugar utópico no oceano que seus ancestrais desbravaram, como se fosse uma nova Atlântida, mas mais ligada política e culturalmente aos países colonizados por Espanha e Portugal do que à Europa.
Hoje, trinta anos após a publicação deste romance, a unidade da União Europeia ainda está em xeque. Alguns dos países que integram esse bloco, que se acreditava estável, começam a apresentar insatisfações, vide o recente plebiscito ocorrido no Reino Unido.
Voltando à ficção, todos querem arranjar uma explicação para o fenômeno do desligamento físico da península Ibérica, mas os métodos científicos não conseguem esclarecer a situação. Muitas pessoas migram até os montes Pirineus para ver com os próprios olhos o mar onde antes havia a Europa.
“Parece isto um absurdo, um contra-sentido, mas não é (…), agora não viajamos nós de comboio, vamos mais devagar em cima duma jangada de pedra que navega no mar, sem prisões, a diferença só é a que existe entre o sólido e o líquido. Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira (...)”
A trama da história está centrada em cinco personagens principais que, por meio de estranhos acontecimentos, estão ligados entre si e ao fenômeno do desligamento. Já no início do livro conhecemos alguns deles e os fatos incomuns que talvez tenham causado a separação da península. Digo talvez porque em nenhum momento o autor deixa claro se foram eles os responsáveis pelo acidente geográfico. As suas ações incomuns são as seguintes: Joaquim Sassa, na praia, viu uma pedra imensa e arremessou-a ao mar, fazendo-a ir muito além do que suas forças permitiam; Joana Carda riscou o chão com uma vara de negrilho, e o risco não se apagava por nada; José Anaiço começou a ser seguido por estorninhos (passarinhos), que simplesmente ficavam voando ao seu redor onde quer que fosse; Pedro Orce, o único espanhol dos quatro, levantou-se, pisou o chão e sentiu-o tremer, sendo que os sismógrafos não indicavam tremores de terra. Após esses eventos, acontecidos em sincronia, a península Ibérica lançou-se ao mar.
Ao longo da jornada, esses personagens encontram mais dois no caminho: um cachorro misterioso que não late e que sempre tem à boca um fio de lã azul, que vai levá-los até Maria Guavaira, galega que encontra uma meia de lã azul e, ao desfiá-la, a lã se multiplica.
A verdade é que esses personagens não são tão interessantes quanto outros do mesmo autor. A forma como eles se relacionam, os romances, os casais, tudo é bastante piegas. O cachorro foi, sem dúvida, o meu personagem preferido. Contudo, essa estrutura de viagem dentro da viagem é bastante interessante, pois ao mesmo tempo acompanhamos a trajetória da península e os acontecimentos que decorrem disso na vida das pessoas, os “navegantes” da jangada de pedra.
“(…) a atenção se concentra no bom andamento de Dois Cavalos sobre uma península, tanto faz que ela vogue* como não vogue, mesmo que a rota da minha vida me leve a uma estrela, nem por isso fui dispensado de percorrer os caminhos do mundo.”
Dessa forma, vemos que este romance trata da identidade portuguesa, do ressentimento em relação à Europa, da memória das grandes viagens e, a partir disso, da diferença entre ser ibérico e ser europeu.
“As viagens sucedem-se e acumulam-se como as gerações, entre o neto que foste e o avô que serás, que pai terás sido, Ora, ainda que ruim, necessário.”
Este foi um livro que demorei para conseguir concluir. A todo momento eu me deparava com alguma frase que me fazia fechar o livro e ficar pensando. Com certeza é uma obra que exige muita atenção do leitor para absorver todas as mensagens sutis e também digerir as mensagens mais diretas e duras.
“Não há consolação, amigo triste, o homem é um animal inconsolável.”
“Sob este céu escuríssimo e os gritos do mar, se a lua agora nascesse, um homem podia morrer de felicidade, julgando que morria de angústia, de medo, de solidão.”
Alguns capítulos são bem arrastados, com muitas descrições geográficas e até repetições. Para quem não está acostumado a ler Saramago, pode ser mais demorado ainda, levando em conta a fama do autor de não utilizar a pontuação e a separação de diálogos da forma padrão, além do vocabulário muito rico.
A ironia é outra marca de Saramago, que também é sempre muito provocador acerca de temas religiosos. Na minha opinião, uma das melhores características do autor é o sarcasmo.
“Aos estorninhos é que não faltava a água, graças a Deus, que mais cuidados tem Nosso Senhor com os pássaros do que com os humanos (...)”
Acredito que, passem os anos que passarem, este livro vai continuar sendo atual, pois, como em todos os romances dele que já li, Saramago coloca muito de humano e universal nesta narrativa. A minha passagem favorita é a seguinte:
“Não falta aí, nunca faltou, quem afirme que os poetas, verdadeiramente, não são indispensáveis, e eu pergunto o que seria de todos nós se não viesse a poesia ajudar-nos a compreender quão pouca claridade têm as coisas a que chamamos claras.”
*Vogar é o mesmo que navegar.
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