RESENHA - Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
- Juliana
- 26 de mai. de 2017
- 4 min de leitura
Este romance, publicado pela primeira vez em 2002, é o sétimo da carreira de Mia Couto, premiado escritor Moçambicano, um dos maiores expoentes da literatura africana atual.

A história nos é contada pela ótica de Mariano, personagem principal, que, em decorrência da morte de seu avó (também Mariano), precisa regressar à ilha em que nasceu e onde passou sua infância, mas de onde está afastado há muitos anos. O livro já começa da seguinte maneira:
A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência. A bordo do barco que me leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a morte que me vai ditando suas ordens.
O regresso à terra natal e ao seio familiar é o tema central deste romance, perpassado pela morte e por eventos sobrenaturais. O fato de a narrativa ser escrita em primeira pessoa nos faz sentir a mesma necessidade que o narrador tem em desvendar os mistérios da ilha e os segredos de sua conturbada família. Precisamos desse narrador-personagem para sentirmos a tensão das dualidades da história, o familiar e o estranho, o real e o sobrenatural, a vida e a morte.
Por Marianinho, vamos conhecendo as tradições e os ritos daquela terra onde a chuva para de cair do céu e a terra recusa-se a se abrir para receber os mortos quando as coisas estão fora de ordem. A ligação daquela gente com a terra e a natureza é profunda de modo que os sujeitos em si se fundem aos elementos naturais.
Foi por isso que sempre rezei sob esta sombra. Para aprender de sua eternidade, ganhar um coração de longo alcance. E me aprontar a nascer de novo, em semente e chuva.
A figura do rio é tão forte na narrativa que podemos considerá-lo um personagem. É ele quem divide o país, separa o mundo atual, racional e capitalista do mundo místico e tradicional da ilha.
"- O homem trança, o rio destrança."
"- O rio é como o tempo!" Nunca houve princípio, concluía.
Ao chegar na sua terra natal, Marianinho se depara com um avô que não está morto por completo, pois ainda apresenta fracos sinais vitais. Para completar, sua avó, Dona Dulcineusa, diz que ele foi o escolhido pelo avô para liderar os ritos de enterro. Perplexo e no meio de uma grande tensão familiar, Mariano começa a receber cartas de seu avô que são estranhamente escritas pelo seu próprio punho. Essas cartas vão guiar Marianinho em busca de algumas respostas sobre a estranha morte do avô e revelar a ele mistérios sobre a sua própria identidade.
Ao longo do romance, temos pinceladas do contexto histórico que o envolve. Uma Moçambique pós-colonial passando por um período de "paz" após muitos anos de guerra. Vemos, pelos sentimentos do pai de Marianinho, o fracasso do sonho de uma nação próspera e livre para o povo.
No início de cada capítulo, temos citações que podem ser de personagens da "vida real", como de João Cabral de Melo Neto e da poetisa portuguesa Sofia de Mello Breyner, ou de personagens do próprio romance. Dessa forma, não apenas sabemos mais sobre o capítulo que segue como também sobre o personagem que dá vida à citação.

Sobre a construção dos personagens, podemos ver claramente como Mia Couto utiliza o recurso de nomeá-los de forma a representar a sua condição dentro da história. Isso quer dizer que nós podemos inferir muitas coisas sobre determinados personagens a partir apenas do nome. Por exemplo, nós temos os tios Ultímio, o caçula, e Abstinêncio, conhecido como uma pessoa fechada e sóbria. Temos também as mulheres: Mariavilhosa é a mãe que morreu quando Mariano ainda era criança e que sempre é lembrada como mulher bonita e forte; Miserinha é uma mulher marcada pela pobreza e pelo sofrimento; e Admirança é uma mulher bela e cercada de mistérios...
Mia Couto cria um universo que muitos críticos comparam com o realismo fantástico latino-americano. Há coisas que não podem ser explicadas cientificamente, mas que podem ser facilmente interpretadas e que fazem muito sentido dentro do universo criado pelo autor.
A linguagem utilizada é fluida e poética, como o enredo em si, cheia de figuras de linguagem e rimas. São utilizados muitos termos locais e um falar bem moçambicano, o que é muito interessante para nós, brasileiros.
A gente não vai para o céu. É o oposto: o céu é que nos entra, pulmões adentro. A pessoa morre é engasgada em nuvem.
Se por um lado nós ficamos encantados com algumas idiossincrasias daquele povo, como a necessidade de respeito à natureza (vale lembrar que Mia Couto também é biólogo), por outro lado ficamos chocados com uma sociedade extremamente patriarcal e machista, a ponto de uma viúva perder até a casa onde vive para parentes distantes.
Nesta história, Marianinho acha que vai enterrar o seu avô, mas a verdade é que ele mesmo vai renascer. Nós ficamos presos a esse enredo do início ao fim, a leitura é muito fácil e prazerosa para qualquer tipo de leitor, por isso indico fortemente este livro.
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